segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A Feia Nudez



 Por Nelson Rodrigues

A propósito da melindrosa de 1929, escrevi, certa vez: — “Como
é antigo o passado recente”. Gostei da frase e pinguei-lhe um ponto
de exclamação. De então para cá, sempre que posso repito, e não
sem uma certa vaidade autoral: — “Como é antigo o passado
recente”.
E, de fato, não há mulher mais antiga, mais fenecida, do que a
melindrosa de 1929. É anterior a qualquer baixo-relevo assírio,
fenício ou que outro nome tenha. Há pouco, andei repassando um
dos primeiros números de O Cruzeiro. Exatamente de 1929, se não
me engano. E vi as grã-finas da época. Já não falo do vestido sem
cintura, nem do penteado, nem do sapato etc. etc. O que me importa
é valorizar o espantoso olhar e o espantoso sorriso.
Cada época sorri de certa maneira, olha de uma certa maneira.
Repito: — por um olhar, ou por um sorriso, pode-se dizer de uma
certa dama: — “Esta é do século Fulano, ou do século Beltrano”. E
quanto mais antiga, a pessoa mais se parece conosco. Ao passo que
há, entre nós e a melindrosa, como que uma distância abismai.
Dirá alguém que de 1929 para cá são passados apenas 39
anos. Ah, não acreditem no falso tempo das folhinhas. A idade da
melindrosa de O Cruzeiro nada tem a ver com esses míseros,
escassos 39 anos. E ela sorri de um tal jeito, e olha de tal jeito, que,
por vezes, me ocorre a seguinte suspeita: — “A melindrosa de 1929
nunca existiu”.
Se me perguntarem o que havia no seu olhar e no seu sorriso,
eu diria que ambos eram idiotas. Recorram às velhas edições de O
Cruzeiro e, mais velhas ainda, do Fon-Fon, da Revista da Semana.
Vejam as mais belas mulheres e as mais amadas do tempo. Olhavam
e sorriam como débeis mentais. Aí está dito tudo: débeis mentais. E
só admira que alguém as suportasse, ou pior, que alguém as
desejasse.
Não sei se me entendem. Se estou sendo obscuro, paciência.
Mas, como ia dizendo: — desdobro aqui a minha meditação de
ontem. Falei do biquíni, que, a meu ver, é muito, muitíssimo anterior
ao primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. O biquíni, repito, tem a
idade do impudor, que podemos estimar em para mais de, sei lá, 40
mil anos. Digo 40 mil anos, como poderia dizer milhões.
Bastam os 40 mil. O impudor era certo, natural, consagrado,
na mulher pré-histórica. Mas, quando a mulher se tornou um ser
histórico, o pudor foi a sua primeira atitude, o seu primeiro gesto.
Mesmo as mais degradadas preservavam um mínimo de pudor. E eis
que, de repente, em nossos dias, há todo um movimento regressivo.
Aí está o biquíni.
Dirão que tenho a fixação do biquíni. (A nossa vida moral
depende de uma meia dúzia de nobilíssimas idéias fixas. O santo ou,
nem tanto, o simples homem de bem há de ser um obsessivo. Tenho
um amigo que só pensa em biquíni. Nos pesadelos, os umbigos o
atropelam.)
Durante séculos e séculos, a História preservou o mistério e o
suspense do umbigo. Era como se a mulher não o tivesse. Através
das idades, só o marido de civil e religioso, ou o parteiro, conseguia
vê-lo. Para os outros, o umbigo era irreal, utópico, absurdo. E,
súbito, começam a aparecer, aqui e ali, as praias pré-históricas. Tal
como no tempo em que os homens viviam em hordas bestiais. E
começamos a época da nudez sem amor, do nu de graça e, repito,
sem o pretexto do amor. A nudez exclusiva para o ser amado deixou
de existir. Todas se despem, para o ser amado e para outros,
inclusive o crioulinho do Grapette.
Deixo de lado os outros povos. O que me interessa é o nosso.
Nunca o povo brasileiro viveu tanto do passado, das rendas do
passado. Somos devorados por misteriosas nostalgias. Dizia-me,
ainda ontem, o meu amigo Luís Eduardo Borgerth: — “Nós somos
vestidos pelos nossos avós”. O próprio Borgerth anda, por aí,
estranhíssimo. Inaugurou um bigode que me deu o que pensar. Eu
quebrava a cabeça perguntando-me a mim mesmo: — “Onde é que
eu vi esse bigode?”. E, súbito, um nome faísca na treva: “Rio Branco,
barão do Rio Branco”. O nosso Luís Eduardo pôs o bigode espectral
do barão.
E o Carlos Alberto, presidente do Banco do Estado da
Guanabara? Doce figura. Um belo dia aparece com os bigodões de
um longínquo avô. Quando ele entra, ou quando ele sai, dá a
sensação de que é avô de si mesmo, ou o neto de si mesmo. No dia 2
ou 3 do presente janeiro, fui receber na TV Globo. Embolso o dinheiro
e passo no gabinete do Walter Clark, o gênio da televisão. (Segundo o
Otto Lara Resende, o Walter seria gênio do mesmo jeito, fosse
arquiteto, veterinário, agrimensor ou bombeiro hidráulico.)
Entro e vejo o meu amigo sem paletó, um vasto charuto. O
charuto é o de menos. O transcendente eram os suspensórios. Não
se pode falar dos suspensórios do Walter Clark sem lhes acrescentar
um ponto de exclamação. Falei da melindrosa de 1929. Pois é esta a
data dos suspensórios de Walter Clark, e repito: — era assim que os
gângsteres da Grande Depressão seguravam as suas calças. Não só
os suspensórios. Também o colarinho, a gravata, a camisa listrada,
as botinas.
Eu disse 1929 e já não sei se a sua elegância não será um
pouco anterior. O fato é que, ao me despedir, tive vontade de
perguntar-lhe: — “Estás faturando bem com a Lei Seca?”. Mas o
leitor sairia frustrado se eu não contasse uma singularidade: — os
suspensórios do Walter Clark têm paisagem. Neles há o Pão de
Açúcar, corações flechados, faunos de gaitas, sátiros de pés de cabra
etc. etc.
Para sair da Grande Depressão, tive de deixar o gabinete. E cá
fora, no corredor, já comecei a respirar o ano de 1968. Mas por toda
parte continuo sentindo focos do passado. Na quinta-feira passada,
apareceu aqui, de repente, o Otto Lara Resende. Vinha de Lisboa. Às
sete horas da noite, sua presença explodiu na casa do Hélio
Pellegrino.
Mas era um outro Otto, sem nenhuma relação com o que daqui
saíra para conquistar Portugal. Durante sua ausência mandara-me
uma carta em que julguei perceber um sotaque lisboeta de Leopoldo
Fróis. Mas na casa do Hélio Pellegrino deu-me outra impressão.
Lusíada da cabeça aos sapatos. Ou melhor: Eça puro. O Otto
instalou ali, na rua Nascimento Bittencourt, todo um clima antigo. E
ele próprio parecia alguém expelido do ventre da primeira edição de
Os Maias.
[15/1/1968]

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